
Podemos dizer que a história do Brasil se assemelha à de Ivan Ilitch, personagem do célebre escritor russo Leon Tolstói (1828-1910): “[…] das mais comuns e portanto das mais terríveis”. Incluo aqui incontáveis fatos recentes que têm deixado os brasileiros desnorteados e certamente se tornarão uma mancha indelével na nossa memória coletiva.
Tolstói publicou “A morte de Ivan Ilitch” em 1886, quando já era conhecido por grandes obras como “Guerra e Paz” e “Anna Karênina”. Em menos de 100 páginas, narra a história de um juiz que sente a morte se aproximando junto às dores agonizantes de uma doença que ele não sabe ao certo do que se trata.
O livro, inclusive, começa com o velório, mas volta no tempo para mostrar como o protagonista conhece a esposa e se muda para um apartamento, o qual começa a decorar de acordo com o seu gosto. Ivan, no entanto, cai e se fere na região do rim e, depois de um tempo, acredita ter contraído uma doença – nunca diagnosticada com precisão.
Quando o ferimento se agrava, Ivan não consegue mais sair de casa e imerge em uma série de reflexões. Percebe que sua vida é vazia e baseada em aparências. Foram poucos os momentos realmente significativos que vivera. O resto foi atuação social e comodismo.
Em meio aos tormentos da suposta doença, acredita que a família esconde dele seu verdadeiro estado de saúde: “O que mais atormentava Ivan Ilitch era o fingimento, a mentira, que por alguma razão eles todos mantinham, de que ele estava apenas doente e não morrendo e que bastava que ficasse quieto e seguisse as ordens médicas que ocorreria uma grande mudança para melhor. Mas ele sabia que nada do que eles fizessem teria outro resultado que não mais agonia, mais sofrimento e a morte. E a farsa desgostava-o profundamente: atormentava-o o fato de que se recusassem a admitir o que eles e ele próprio bem sabiam, mas insistiam em ignorar e forçavam-no a participar da mentira. Esse fingimento que se estabeleceu em torno dele até a véspera de sua morte, essa mentira que só fazia colocar no mesmo nível o solene ato de sua morte, suas visitas, suas cortinas, seu caviar para o jantar… eram-lhe terrivelmente dolorosos”. (Tradução de Vera Karam, L&PM, 1997)
Em outro trecho, o autodesenganado Ivan Ilitch desconfia do médico que o examina: “E aperta a mão de seu paciente e logo abandona o ar descontraído e começa com ar sério a examinar o paciente, sentindo o pulso e tirando a temperatura, auscultando-lhe e dando-lhe batidinhas. Ivan Ilitch sabe muito bem que isso tudo não passa de fingimento […]”.
Assim como o personagem russo, o Brasil agoniza. Com o vírus descontrolado, as cinzas do Pantanal e da Amazônia, as incertezas econômicas e sociais e as patifarias de sua classe política, a começar pelo presidente da República. Nesta semana, Bolsonaro desautorizou seu terceiro ministro da Saúde desde março – um general da ativa que ele efetivou no cargo a contragosto de muitos – ao cancelar a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa. Assistimos a tudo isso impassivelmente, como se repetíssemos algumas das últimas palavras de Ivan Ilitch: “Vá em frente! Maltrate-me! Mas por quê? O que foi que eu fiz? Por que tudo isso?”.
Como a primeira cena do livro já revela, Ivan morre. Mas, em certa medida, morre uma pessoa melhor, após seus últimos instantes de vida dedicados a uma profunda autocrítica. Fazer autocrítica é quase sempre essencial quando queremos solucionar algum problema. Mas, no momento, talvez estejamos anestesiados demais para isso.